sábado, 3 de julho de 2010

As duas mulheres

Saudade acordou com frio, naquela noite sem fome, enquanto sombras de acácias mal iluminadas lembravam laços de uma infância perdida. Muitas vozes ainda podiam ser ouvidas, o que é bem distinto de serem bem compreendidas. Aliás, nada era fácil de entender: as palavras assumiam personalidades várias, sentidos múltiplos, como se fossem fragmentos de cores misturadas na paleta antiga do artista decaído, enfim!
Não muito distante dali, outra mulher de outros afetos ignorava qualquer proibição. Esperança, extasiada com os próprios e mirabolantes planos, antevia viagens, recitava em saraus, bebia vinhos, compartilhava jóias e colchões. Enxergava com inacreditável lucidez o beijo moreno, o abraço de pernas, o encontro dos hálitos... e sorria, sorria de prazer prévio, esquecendo ou simplesmente desprezando qualquer infeliz eventualidade do porvir.
Em algum lugar desconhecido as duas haverão de encontrar-se?! Saudade e Esperança talvez se reconheçam na boa hora do almoço, entre centenas de comensais distraídos nas muitas solidões que os acompanham. Ou, quem sabe, o encontro acontecerá em noite de lua cheia, de poesia no ar, ao lado do murmúrio prazeroso de casais ainda novatos na arte de desconhecerem-se. Pode ser, até, que jamais Saudade e Esperança se choquem na estação do metrô, que não sejam vítimas do mesmo criminoso da rua escura ou que deixem de frequentar a missa das cinco horas sem nunca terem se dado as mãos para a oração que o pai nos ensinou.
E tudo continuará como está. Saudade atrapalhando o sono. Esperança acalentando o sonho. E alguém, sem nome certo, seguindo com seu cansaço de sempre.